Agosto Lilás pela conscientização e combate à violência contra a mulher

Neste 7 de agosto, celebra-se mais um ano da sanção da Lei Maria da Penha (Lei Federal nº 11.340/ 2006), um marco no enfrentamento da violência doméstica no Brasil. E a partir desta data, o governo federal estabeleceu a campanha Agosto Lilás, transformando este em um período dedicado à conscientização e combate à violência contra a mulher. Para além desta data, o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Pará e Amapá), por meio de sua Secretaria de Comunicação (Secom), mantém campanha permanente de sensibilização e informação sobre a identificação de situações de violência e os canais disponíveis para denúncias, como o Disque 180.
Em parceria com a Escola de Servidores - ECAISS e seu Subcomitê de Participação Feminina, o TRT8 também promove diversas palestras e outras iniciativas que abordam a mesma temática, voltada especialmente para suas servidoras e magistradas. Entre as palestrantes convidadas este ano, está a professora Dra. Valeska Zanello, que falou ao público interno e externo sobre "Saúde Mental, Gênero e Interseccionalidades" - em março, Mês da Mulher - baseada especialmente nas pesquisas realizadas para seus livros mais recentes: “A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações” (2023) e “Masculinidade e Dispositivo da Eficácia” (2025).
A professora destacou como o Brasil é um país violento com as mulheres, com vários índices que comprovam isso. A 19ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgada no último dia 24 de julho, por exemplo, mostra que apesar da queda de 5,4% nas mortes violentas em geral, os feminicídios e os estupros atingiram os maiores números da série histórica iniciada em 2011. Em 2024, o Brasil registrou 1.492 feminicídios, um aumento de 1% em relação ao ano anterior.
Além das questões de gênero - ser mulher -, há ainda um recorte de raça e a clara relação com violência doméstica. A maioria das vítimas era mulher negra, tinha entre 18 e 44 anos, foi assassinada dentro de casa, por homens, sendo o companheiro ou ex-companheiro o autor do crime em grande parte dos casos. Quase metade dos assassinatos foi cometida com arma branca, como facas. O levantamento também revela que 121 mulheres mortas em 2023 e 2024 estavam sob medida protetiva no momento do assassinato. Em 2024, cerca de 100 mil medidas protetivas foram descumpridas no país.
Outro dado preocupante é o recorde de estupros: foram 87.545 vítimas em 2024, o equivalente a uma pessoa estuprada a cada 6 minutos. Três em cada quatro vítimas tinham até 14 anos, configurando estupro de vulnerável. A alta em relação a 2023 é de quase 1%, mas representa um crescimento de 100% desde 2011. O estudo ressalta que, embora o aumento nos registros possa refletir maior disposição das vítimas em denunciar, os números evidenciam a persistência e a gravidade da violência sexual no Brasil.
Além dos estupros, outros crimes sexuais também apresentaram aumento em relação ao ano anterior, como assédio sexual, importunação sexual e pornografia. “São fenômenos ligados ao medo, submissão e controle das mulheres”, destaca Valeska Zanello. “E é muito importante pensar na tentativa de feminicídio, especificamente no tema da violência contra a mulher. A relação entre violência não letal e letal é de alta escalabilidade, ou seja, vai crescendo. Então, se você não intervém, a chance de ter um destino funesto é grande. O Brasil é um país que odeia as mulheres e a gente tem que falar sobre isso. A gente vive uma guerra naturalizada contra a gente”, ressalta.
IMPACTO NA SAÚDE MENTAL
É preciso dizer ainda que existe muita pesquisa mostrando uma clara co-relação entre violência doméstica, violência sexual contra a mulher e casos de depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e transtorno do sono. “Eu tenho várias críticas a algumas nomenclaturas”, diz a professora Zanello. “Eu pergunto: se você dorme com um homem que você não sabe se ele vai te dar ‘bom dia’ ou uma facada, e você não consegue dormir, isso é um transtorno do sono ou uma estratégia de sobrevivência? Se o psiquiatra te der um benzodiazepínico (medicamento para insônia), ele está te fazendo um bem ou um mal?”, questiona.
E é preciso falar diretamente aos homens, não apenas às mulheres. Valeska Zanello lembra uma pesquisa realizada em 2013 pelo Instituto Avon/Data Popular, intitulada “Percepções dos homens sobre a violência doméstica contra a mulher”. Quando questionados se já foram violentos com suas parceiras, só 16% dos homens disseram já ter praticado alguma violência. “Tem alguma coisa muito errada nessa conta, não é?”, diz Zanello. “E o que é interessante é que ao longo das outras perguntas da pesquisa, os homens confirmaram já terem feito algo: ‘Você já ameaçou?’, ‘Você já a humilhou?’, ‘Você já teve tal atitude controladora?’. Então a gente tem um problema que é a invisibilização dessa violência para os homens”.
Por isso, explica a pesquisadora, é preciso pensar a violência contra as mulheres como um iceberg. “Geralmente, quando a gente está falando do feminicídio, está falando daquilo que é mais visível e chocante, mas cujas raízes estão em violências muito aceitas e naturalizadas, como o machismo da mídia, a pornificação da cultura. Se usa a nudez da mulher para vender sapato, geladeira, cerveja. Grupos de WhatsApp masculinos são outro exemplo dessa naturalização da violência misógina. A gente vai subindo o degrau da violência e se torna mais ou menos visível. Mas muitas vezes, apesar de visível, continua sendo aceitável: ‘Ah, ele só estourou, isso é coisa de homem’. Existe uma clara desresponsabilização dos homens”, alerta.
MACHISMO ADOECE E MATA OS HOMENS
Porém, a misoginia, o machismo, também afeta os homens. As principais causas de morte entre homens no Brasil são duas: as doenças do aparelho circulatório, como infarto e acidente cerebral (AVC); e as causas externas, como acidente de carro, homicídio e suicídio. “As doenças do aparelho circulatório, o que as pesquisas mostram é que, quando as mulheres têm a mesma doença, o prognóstico do homem é muito pior. Então, com a mesma doença, os homens morrem antes. Por que? Porque eles não se cuidam. A ideia do autocuidado, de procurar a ajuda de alguém, fere o ideal da masculinidade. O homem, geralmente, quando busca ajuda, já está muito ferrado. E geralmente, quem faz o homem buscar ajuda é uma mulher. Então a masculinidade é letal para os homens”.
Entre as causas externas, a morte por acidente de carro está no top 3. “A masculinidade faz com que os homens se arrisquem muito mais e, por isso, sofrem mais acidentes. E os homens se matam mais que as mulheres, mesmo em um país onde as mulheres tentam se matar mais que os homens. Até na hora de se matar, ‘o cabra tem que ser macho’ e escolhe a forma mais letal. Geralmente, é enforcamento, tiro na cabeça”. E há ainda os homicídios, que são as brigas entre os homens. “O que a gente tem é um generocídio, um único gênero matando a todos. Quem está matando as mulheres? Os homens. Quem está matando os homens? Os homens. E quem é que mais está se matando? Os próprios homens. Então está muito mal. A masculinidade está profundamente adoecida”.
Valeska Zanello destacou como a sociedade está mergulhada em uma cultura sexista, que usa o sexo para classificar as pessoas e colocar em lugares diferentes. “Vou fazer uma pergunta muito simples para as mulheres: se você tivesse nascido nascido do sexo masculino, sua vida seria diferente? Tem coisas que você deixa de fazer por ser mulher? Teve coisas que você não pôde fazer ou foi obrigada a fazer por ser mulher? É sobre isso. Isso opera efeitos na realidade”.
E o que tem aparecido nas pesquisas, segundo Zanello, é que subverter a orientação sexual não subverte essa conformação. “Quando eu fiz pesquisa no mundo gay, também há uma pirâmide por lá. Quem está no topo do mundo gay? O gay que performa o ‘heterotop’. E quem está no pior lugar? O gay afeminado, chamado de ‘bicha poc’, ‘bixinha’, pelos outros gays. Então esse é um ponto importante: ser gay não te poupa de ser misógino”.
TECNOLOGIAS DE GÊNERO
Essa pedagogia se dá por meio também das tecnologias de gênero, conceito dado pela geneticista Teresa de Lauretis, que aponta para a ideia de que existem produtos culturais que têm um caráter ativo de demandar, incitar essa cultura sexista. Por exemplo: para as mulheres, qual é a principal tecnologia de gênero? Geralmente são produtos românticos. Veja o sucesso de bilheteria com “A Bela e a Fera”, uma moça bonita que se apaixona por uma besta, grosseiro, problemático, traumatizado, que precisava ir para a terapia se tratar. Mas ela, com muito amor, se dedica e transforma o ogro em um Príncipe Encantado.
“Assim, o que a gente aprende é que depende do nosso esforço [como mulheres] transformar o ‘perebado’ em príncipe. E olha como isso é perverso: você conhece um cara, ele fez carreira na droga, mas você vai se esforçar e ele vai largar a cocaína. Ele é ciumento e descontrolado, mas com muito esforço, você vai deixar de usar blusa decotada, vai deixar de sair com aquela amiga solteira, e ele vai mudar. Não vai, gente! As mulheres têm dificuldade de sair de uma relação abusiva porque elas acham que depende delas transformar o ‘perebado’. A cultura nos ensina a nos hiper-responsabilizar por nós mesmas e pelos homens, pelo que eles fazem”, aponta Zanello.
As próprias mulheres servem de tecnologias de gênero umas para as outras. “A gente vê isso em encontros de família. Imagina: você é desembargadora, está solteira, e ainda te perguntam ‘mas nem um namoradinho?’. Você pode ser a top da galáxia, mas se for solteira: ‘coitadinha, ainda não teve filho’. A solteira ainda é entendida como uma mulher mal sucedida e sem protagonismo. Se ela está solteira ‘é porque nenhum homem quis’ e não porque ela está descobrindo que é bom ser avulsa. E as pesquisas apontam isso: o casamento é o principal fator de risco para a saúde mental das mulheres”.
E quais são as principais tecnologias de gênero masculino? A pesquisadora destaca a pornografia. “Ela é muito problemática. Eu vejo muita gente tentando tirar a força da crítica à pornografia dizendo ‘isso é moralismo’, e nada a ver, a gente critica por razões diferentes. O problema é político-afetivo. Qual é o tipo de emocionalidade que tem sido incitada nos homens, o que os homens têm aprendido com ela é a objetificação sexual. E o consumo no Brasil tem começado cada vez mais cedo, meninos de 9/10 anos. Existem estudos da neurociência que mostram que vai tendo uma dessensibilização, cada vez ele tem que ver um tipo de vídeo mais brutal, ou seja, estupro, chegando inclusive a afetar a vida sexual desse rapaz. O que a pornografia ensina é a desumanização das mulheres. E isso é muito sério”.
PRATELEIRA DO AMOR
A professora aborda ainda a terceirização da autoestima para as mulheres. “A gente aprende uma relação da gente com a gente mesma, que é mediada pelo olhar de alguém que nos escolha e nos valide. Por que a nossa autoestima é tão baseada na opinião, no elogio? Quando alguém diz ‘nossa você engordou’, já dá vontade de entrar na faca. Não é à toa que o Brasil é um dos países que mais consome intervenções estéticas, e a gente está falando de meninas de 19 anos já botando botox e silicone. É lucrativo. A baixa auto-estima das meninas é uma mercadoria”.
Valeska Zanello criou então a metáfora da “Prateleira do Amor” para as mulheres entenderem o dispositivo amoroso. “Imagina uma prateleira do supermercado. Quando você está passando, pega o produto que está na frente. Essa prateleira é mediada por um ideal estético: branco, louro, magro e jovem. Então você pensa ‘estou muito bem nessa prateleira, sou a Gisele Bündchen jovem’. Gente, a prateleira é ruim para todas as mulheres. Porque, se você tiver a sorte de envelhecer, você está migrando cada dia para atrás da prateleira. Mas quem é que está no pior lugar da prateleira? As mulheres negras”.
Quanto mais para trás na prateleira, mais a mulher é objetificada e preterida, “é vista como coisa”, compara a pesquisadora. “Quem fica na frente também não é visto totalmente como gente não, mas ainda pode receber algum afeto. A prateleira só é boa para os homens porque, na nossa cultura, quem avalia as mulheres são os homens, e quem avalia os homens são os próprios homens. Qualquer homem, seja o ogro que for, se sente no direito de nos avaliar. Então é aquele homem velho e acabado que diz: ‘olha a fulana, está velha’. A prateleira leva os homens a terem uma autoestima delirante”.
E o que é ensinado às mulheres, explica Zanello, é que nessa prateleira o grande sucesso é ser escolhida - e se manter escolhida. “Os homens aprendem a manipular isso: ‘eu já tive várias namoradas, já até me casei, mas você vai ser a mãe dos meus filhos’. Ela pensa ‘sou a especial das especiais’. É isso que a música sertaneja vende pra gente, o ‘ser diferente das outras’. Então a prateleira cria uma rivalidade entre as mulheres, onde a gente aprende que, ou eu tenho que brilhar mais que todo mundo ou eu tenho que apagar o brilho da coleguinha para ter a chance de ser escolhida. Quem lucra com a rivalidade entre as mulheres, adivinhem? São os homens”.
E é assim que se cria a cultura de que terminar a relação amorosa é falhar como mulher, então muitas, explica Zanello, mesmo quando saem de uma relação abusiva, se sentem mal, como se tivesse falhado. “Ela sente que não foi mulher o suficiente pra mudar o ‘perebado’ e salvar o casamento - a gente não aprende desde criança que essa é a nossa responsabilidade?”. Assim, é importante dizer que os dispositivos de gênero participam das situações de violência contra as mulheres.
“Quando você sai com um cara, é muito comum que ele não seja violento. A violência começa de forma tácita, então ele vai dizer assim: ‘nossa, você pintou a boca parece uma palhaça’. Você vai se chatear e ele vai dizer: ‘você não tem senso de humor, só fiz uma brincadeira’. A ponto das mulheres quando elas já estão numa relação abusiva dizerem: ‘mas, doutora, ele não me bate, ele só me empurra’, ‘ele só me xinga’”. O que acontece é que existe um aumento gradual da violência, levando a uma ‘dessensibilização’, um aumento de tolerância. Então essa mulher já nem enxerga a violência. E sente o peso desses dispositivos que imputam nela a responsabilidade pela violência masculina”. O ápice nessa pedagogia cruel, diz Zanello, é o feminicídio. “É o silenciamento completo”.
Texto: Lais Azevedo/Secom TRT8